A promessa de autonomia e renda flexível que atraiu milhões de brasileiros para os aplicativos de transporte tem se transformado, para muitos motoristas, em uma rotina de desgaste físico, desvalorização e incerteza financeira. Motoristas parceiros da Uber, uma das maiores plataformas do setor, têm se mobilizado nas redes sociais e em grupos de apoio para denunciar o que chamam de “condições insustentáveis de trabalho”.
Segundo dados da própria Uber, o Brasil conta atualmente com cerca de 1,6 milhão de motoristas ativos na plataforma. No entanto, o número esconde uma movimentação intensa de entrada e saída de condutores. Muitos desistem após alguns meses de atividade, frustrados com os ganhos insuficientes para cobrir os custos operacionais cada vez mais altos.
Corridas baratas, custos altos
Um dos principais motivos de insatisfação é a defasagem das tarifas repassadas aos motoristas. Enquanto os preços dos combustíveis, veículos, manutenção e até aluguel de carros dispararam nos últimos anos, os ganhos por corrida pouco evoluíram. Em muitas locadoras, por exemplo, motoristas relatam pagar cerca de R$ 900 por semana na locação de um veículo, muitas vezes com limitações de quilometragem, o que obriga jornadas ainda mais longas para equilibrar as contas.
“Você sai de casa para rodar 12, 14 horas por dia e no final do mês mal paga as despesas. Se o carro é alugado, pior ainda”, desabafa Marcelo Silva, motorista de aplicativo há quatro anos em São Paulo. “A Uber precisa rever a política de tarifas, ou vamos todos desistir.”
Taxas elevadas e bloqueios contestados
Além da questão financeira, outro ponto crítico apontado pelos motoristas são as taxas cobradas pela Uber e os bloqueios considerados arbitrários. A plataforma chega a reter até 40% do valor de algumas corridas, segundo relatos. Para os motoristas, esse percentual é visto como abusivo, principalmente diante da estagnação nas tarifas e dos crescentes custos para manter o carro rodando.
Pior ainda, dizem eles, são os bloqueios “sem justificativa clara”. Motoristas relatam ter sido banidos da plataforma de maneira repentina, muitas vezes baseados apenas em denúncias de passageiros, sem direito a defesa ou processo transparente de apelação.
“Fui bloqueado depois de uma avaliação negativa injusta e não consegui nem falar com um ser humano para recorrer”, reclama Carla Menezes, de Belo Horizonte. “Fica um sentimento de impotência muito grande.”
A resposta da Uber
Procurada pela reportagem, a Uber afirmou que revisa constantemente suas políticas de segurança e de repasse financeiro, e que “mantém canais de suporte disponíveis para todos os motoristas parceiros”. A empresa também destacou que criou, recentemente, um sistema de revisão de bloqueios para garantir que decisões sejam “justas e baseadas em evidências concretas”.
Contudo, para muitos motoristas, as respostas da plataforma ainda estão longe de resolver os problemas do dia a dia. Movimentos organizados por grupos de motoristas têm se intensificado, com paralisações e protestos ocorrendo em diversas cidades brasileiras ao longo dos últimos anos.
Desistência em massa?
O cenário atual levanta dúvidas sobre a sustentabilidade do modelo de negócios da Uber no Brasil. Embora a plataforma continue atraindo novos condutores, a alta rotatividade e a insatisfação crescente ameaçam a qualidade do serviço e podem forçar mudanças estruturais.
Enquanto isso, motoristas seguem enfrentando uma rotina exaustiva, na esperança de que a pressão coletiva resulte em melhorias reais. “A gente não quer deixar de trabalhar, só queremos condições dignas”, resume Marcelo Silva.

Análise | Por Moisés Dutra
A situação dos motoristas da Uber expõe de forma emblemática as contradições da chamada “economia de plataforma”. Vendeu-se a ideia de flexibilidade e empreendedorismo, mas a realidade, para muitos, tem sido a de uma precarização disfarçada de oportunidade.
A defasagem das tarifas, em meio a uma inflação de custos operacionais, representa não apenas um desafio econômico, mas também uma falha ética por parte das empresas que operam neste mercado. A Uber, ao mesmo tempo em que amplia seus lucros globais, transfere o ônus quase integral do risco e dos custos para os motoristas — que, por não serem formalmente empregados, ficam desprotegidos de garantias básicas como salário mínimo, jornada regulada e proteção contra demissão arbitrária.
O problema dos bloqueios injustificados é ainda mais grave. Ao agir como juiz e executor de penalidades, muitas vezes baseadas em relatos frágeis e sem contraditório, a plataforma viola princípios elementares de justiça. Para muitos motoristas, ser bloqueado significa ver sua única fonte de renda desaparecer de um dia para o outro, sem explicações adequadas.
É urgente que o poder público avance na regulamentação deste setor, garantindo condições mínimas de trabalho digno para quem movimenta diariamente a economia das cidades. Enquanto isso não acontece, cabe também ao consumidor refletir sobre o preço que se paga por uma corrida barata: na outra ponta, há sempre um trabalhador exausto, pagando a conta invisível do conforto alheio.